- Nº 2024 (2012/09/13)
Um apurado sentido do que é serviço público

Os <i>“Proms”</i> da Festa do Avante!

Festa do Avante!

Tem os anos suficientes para se ter tornado já uma tradição, a abertura do palco principal da Festa do Avante! ser um espectáculo de música sinfónica.

O que é muitíssimo relevante por a Festa ser uma grande manifestação política e cultural que movimenta centenas de milhares de pessoas, das mais diversas classes sociais, das mais diversas gerações, com formação académica muitíssimo diferenciada, oriundas de todo o País e até com um amplo espectro político, onde naturalmente a esquerda e o Partido Comunista Português são preponderantes.

Neste quadro, abrir a Festa do Avante! com um concerto sinfónico tem um enorme significado. Para a maioria daquelas pessoas a Festa do Avante! é o único local onde terão tomado contacto, pela primeira vez, com a música erudita e, provavelmente, onde a continuarão a ouvir. É conhecido o desprezo que os sucessivos governos têm por uma política de democratização da cultura. Isso reflecte-se nos canais de televisão públicos avessos a qualquer programação continuada onde se exibam concertos de música sinfónica. As aparições avulsas de concertos de música desse género está praticamente reduzida à pirotecnia dos Concertos de Ano Novo. Na Antena 2, os alinhamentos musicais têm-se progressivamente descaracterizado, com o falso argumento de, por essa via, conquistar públicos. Esses públicos que alegadamente se pretende introduzir no gosto pela audição de música sinfónica, têm ao seu dispor um espectro grande de canais pelo que a intromissão de programas de música dita ligeira, fabricada pelos padrões mais em uso, mesmo se sujeitos a uma selecção criteriosa, não os fará mudar de canal aterrando com normalidade na Antena 2, onde a seguir serão bombardeados pela música erudita. Este equívoco da actual direcção da Antena 2, está a corroer a qualidade de programação que já teve, facilita o caminho para a sua extinção, como parece estar nos propósitos do actual Governo, para quem a cultura é qualquer coisa supérflua.

Neste quadro, a Festa do Avante! dedicando a abertura dos concertos no Palco 25 de Abril, o seu palco principal, à música erudita está de facto a fazer serviço público e a dar um exemplo relevantíssimo de como esse serviço público deve ser exercido. Não como agora acontece nos canais radiofónicos públicos em que o que é dedicado à música sinfónica inclui nos seus programas música dita ligeira, enquanto o dedicado à música ligeira é surdo à música erudita.

No programa do concerto deste ano decidiu-se fazer uma referência aos Concertos Promenade, tal como se explica no programa da Festa «se recordarmos, mesmo genericamente, o que têm sido os conteúdos dessas grandes noites musicais, concluiremos que, pelo Palco 25 de Abril, têm passado peças sinfónicas ou de câmara; obras orquestrais e concertos para instrumentos solistas; aberturas, intermezzi e árias de ópera; música “pura” ou música “funcional”, ou seja, composta em função de outras artes performativas; e até música “programática”, tendo portanto como móbil a inspiração provocada por um determinado acontecimento histórico ou a passagem de uma dada efeméride com peso de referência.

«É assim naturalíssimo que, por maioria de razões, tenha chegado à altura de escolhermos como mote e mesmo como título para o nosso concerto anual a “chancela” dos famosos Concertos Promenade, os velhos Proms, tal como ficaram conhecidos os concertos que anualmente a BBC, serviço público de rádio e televisão britânico, organiza predominantemente no Royal Albert Hall de Londres.

«Chamados de Promenade porque evocando os eventos musicais realizados ao ar livre, desde meados do século XVIII, nos grandes recintos públicos e parques citadinos, estes Concertos tornaram-se um acontecimento maior da programação da BBC a partir de 1927 e, depois de uma interrupção provocada pelos primeiros anos da II Grande Guerra, novamente a partir de 1942, agora no interior de amplas salas de concerto mas ainda e sempre proporcionando ao público um ambiente muito descontraído, quantas vezes sublinhando este com a sua espontaneidade e intervenção colectiva certas passagens de peças famosas e de conhecimento geral.»

O modelo dos Proms, também tem variado muitíssimo ao longo dos anos. A opção por uma alinhamento musical ecléctico recorrendo-se a peças ou excertos de peças musicais famosas tem os seus riscos, é discutível. Poder-se-á questionar algumas opções. Por exemplo, por que não tocar integralmente o Eine kleine Nachtmusik e amputá-lo tocando somente o Adagio, seu primeiro andamento? Esse andamento tem cerca de cinco minutos de duração e a obra integral seriam cerca de mais dez minutos de excelente música que, em nossa opinião, substituiriam com todas as vantagens auditivas, o Danúbio Azul ou a Marcha Radetzky, dos Strauss Johann’s.

Em relação a outras obras em que se tocaram somente um dos andamentos, os terceiros andamentos do Concerto para Violino e Orquestra, op. 64 em Mi menor de Mendelssohn   e do Concerto para Trompete e Orquestra, em Mi bemol maior, Hob VII, Eb3 de Haydn e o primeiro andamento do Concerto para Piano op. 16, em Lá menor , de Grieg, a intenção de apresentar três jovens solistas, Ana Cristina Fernandes Pereira (violino), Sérgio Pacheco (trompete) e Inês Andrade (piano), que foram espelho da qualidade de uma geração de jovens músicos que, nos últimos anos, as escolas de música nacionais têm produzido apesar dos sobressaltos por que tem passado o ensino artístico, justifica, de algum modo, que das obras fossem seleccionados os andamentos que permitissem a esses jovens artistas evidenciar o alto nível performativo que já alcançaram.

Estes reparos não embaciam a relevância que têm estes concertos onde já se ouviu obras complexas como as de Lopes-Graça ou a Cantata aos 20 anos da Revolução de Prokofiev ou algumas das árias de ópera da Gala de ópera do ano passado ou, no seu todo, o do concerto deste ano. A orquestra, com a direcção segura de Vasco Pearce de Azevedo, foi homogénea enfrentando e superando os problemas que um concerto ao ar livre e a humidade que se fazia sentir naquele dia sempre provocam na afinação dos instrumentos.

Mais uma vez, a Festa do Avante! mostra como uma grande festa popular tem um apurado sentido do que é, do que deve ser serviço público. Ficamos todos na expectativa do concerto de abertura do próximo ano.

Manuel Augusto Araújo